Quintal é território e a força da memória no turismo de base comunitária

Lucimeire Juventino, Pedagoga, Guia de Turismo e Matrigestora do Rancho Ateliê

Aos 25 anos, iniciei um processo de volta no tempo e busca do que ficou para trás, minha história, aquela que nunca apareceu nos livros da escola. Os modos da minha família viver e de verem o mundo. De onde vinham? Os gestos do meu avô, que falava usando sempre provérbios que me faziam refletir por no mínimo uma semana. Quem tinha um poço, dividia a água. Na época da colheita se distribuía a feira. As galinhas botavam e serviam toda a vizinhança, se não fosse com ovos, era com o bolo ou omelete com cebolinha picada, dá pra sentir o cheiro só de lembrar. Garoava todos os dias e ninguém reclamava. Pelo contrário, agradeciam, porque a roça precisava de água. No café da manhã tinha pão caseiro, mandioca ou batata doce do quintal, leite que não saía da caixinha, doce de fruta, legumes ou cascas, café ou chá de ervas frescas que a gente mesmo colhia. E bolo, quase sempre tinha bolo de laranja com aquela calda fininha e saborosa, de aroma inconfundível, bolo de fubá com erva doce ou outra iguaria.

“Pessoal do rancho super receptivo, nos ofereceram um café da manhã maravilhoso com gostinho de casa de vó”. (Avaliação de visita Vai de Roteiro)

A gente vivia em ciranda!


As mulheres circulavam ouvindo quem veio antes, levavam as crianças para rezas e benzimentos, trocavam palavras, conhecimento de bordados, crochê, artesanatos e ervas de cura, e discutiam as necessidades do território. Na hora de fazer um parto levavam uma moça junto, pra já aprender na prática.
Quem não estava de resguardo distraia as crianças com roda de prosa e fogueira, música, poesia…
As crianças aprendiam a tocar, tocando, a dançar, dançando, a rimar rimando…E sabiam a hora de parar e ouvir os pássaros, respeitar os ciclos da natureza. Na lida nos quintais, e no jeito de ensinar não importava se a criança era da família ou não, todas eram cuidadas e recebiam atenção.
Antes do meio-dia, sempre aparecia uma avó, um tio ou vizinhos com peixe fresco, vinha lá da represa Billings ou de algum rio de Parelheiros. Despejava o “almoço” num carrinho de mão, ainda vivo. Os peixes a gente limpava ali mesmo, um ajudando o outro. Eram preparados e servidos acompanhados de serralha ou taioba, arroz, feijão, chuchu refogado bem picadinho e farinha ou pirão. E não podia faltar o molho de pimenta que a mãe fazia.
Quem iniciou esta leitura pode achar que estou falando de um lugar fictício, ou muito longe da capital. Mas falo da minha infância na região em que hoje chamamos de extremo Sul da cidade de São Paulo. Poderia escrever “zona Sul”, mas gosto de ressaltar o “extremo” a borda que, para mim, é raiz e potência. Região que hoje abriga o Polo de Ecoturismo de São Paulo.


E os saberes que você carrega?

Um dia desses, alguém me perguntou onde ficava localizado o antigo quilombo em Parelheiros. Me veio na cabeça as rugas da bisa. As crianças sentadas na barra da saia que ela mesma costurou à mão. Bisa contava que os antigos sabiam o caminho do litoral pela mata, iam contando as paineiras. A memória coletiva, e estudos apontam que caboclos e pretos tinham como ponto de reza, o cruzeiro de Santa Cruz, hoje Parelheiros. Uns pretos armavam suas choupanas nos caminhos, outros, escravizados de ganho, iam e vinham da antiga estrada de Santo Amaro levando especiarias no lombo das mulas.
Eu respondi como os antigos diriam, o quilombo era alí mesmo. Compreendi que estava no caminho certo. Porque quando o território começa a ser reconhecido como espaço de memória, lutas e identidade, é sinal de que o que está junto no balaio, a circularidade entre o viver e o lembrar, está sendo nomeada.
O processo criativo do livro infantojuvenil Pé de goiabeira, que lancei em 2017, me impulsionou a buscar mais, pesquisar porque o extremo Sul carrega em suas particularidades cultura, arte resistência, uma estética própria. Esta inquietação hoje se traduz na série de reportagens Matriarcas, que destaca a contribuição das mulheres na construção do território. A série foi produzida pela produtora de jornalismo Periferia em Movimento, tem idealização, pesquisa, apresentação de minha autoria, foi e é inspiração para o surgimento de tantos outros projetos como, peças teatrais, roteiros de turismo.

Como nasceu o Rancho Ateliê?


O Rancho Ateliê nasceu desse movimento todo, de retorno, de escuta, conexão com a natureza e da afirmação de que a história deve ser contada por quem vive. Surgiu como refúgio para a nossa família durante a pandemia, num tempo em que fomos obrigados a desacelerar.
Eu, meu esposo Floriano e meu filho Artur começamos a construir com materiais reaproveitados, plantamos da maneira que aprendemos com os mais velhos. Nesse tempo, meu pai se encantou, antes de sua partida, nos aconselhou a plantar um pomar para os pássaros, com sabores da mata atlântica como cambuci, grumixama, jabuticaba, araçá, uvaia e tantos outros. A abertura das porteiras veio como um pedido do público que desejava nos conhecer.


Lugar maravilhoso, cada cantinho pensado com muito amor para acolher os visitantes, muita troca de energia positiva e saberes ancestrais”. (Avaliação de visita Vai de Roteiro)

Temos a coragem de dizer que somos um quintal, simples assim.


O turismo que praticamos tem levado mais gente a perceber que no Polo de Ecoturismo de São Paulo, há mais do que paisagem, há saberes da diversidade, das africanidades, dos povos originários, das culturas populares, que pedem escuta, respeito e visibilização.
E como não estamos sozinhos, o Rancho Ateliê articula uma rede que vem gerando valorização e renda na comunidade. Hoje, recebemos grupos para vivências que podem incluir rodas de conversa com lideranças locais, coletivos, educadores agroecológicos; oficinas sobre soberania alimentar, cultivo de ervas e plantas comestíveis (PANCs), tecnologias ancestrais como tinta de terra. Também é possível participar de vivências com samba de roda, batuque de umbigada, saborear um almoço ou café da manhã preparados no fogão a lenha e ouvir a história da nossa gente, aquela que os escritos oficiais não contam.

Parelheiros tem a honra de ter sido lar da escritora Carolina Maria de Jesus. No nosso tour Afroturistando em Parelheiros: nos caminhos da escritora Carolina Maria de Jesus, destacamos sua vida e obra, visitando lugares que fizeram parte de sua trajetória e relação com a comunidade rural, que serviram de inspiração para sua escrita.


Seguimos de porteiras abertas, e quem chega encontra escuta, memória, troca e saberes locais compartilhados por quem vive o território.